Por Fabrício Carpinejar
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Imagem: Fabrício Carpinejar |
Morri em Santa Maria hoje. Quem não morreu?
Morri na Rua dos Andradas, 1925. Numa ladeira encrespada de fumaça.
A fumaça nunca foi tão negra no Rio Grande do
Sul. Nunca uma nuvem foi tão nefasta.
Nem as tempestades mais mórbidas e elétricas
desejam sua companhia. Seguirá sozinha, avulsa, página arrancada de um mapa.
A fumaça corrompeu o céu para sempre. O azul é
cinza, anoitecemos em 27 de janeiro de 2013.
As chamas se acalmaram às 5h30, mas a morte
nunca mais será controlada.
Morri porque tenho uma filha adolescente que
demora a voltar para casa.
Morri porque já entrei em uma boate pensando
como sairia dali em caso de incêndio.
Morri porque prefiro ficar perto do palco para
ouvir melhor a banda.
Morri porque já confundi a porta de banheiro
com a de emergência.
Morri porque jamais o fogo pede desculpas quando
passa.
Morri porque já fui de algum jeito todos que
morreram.
Morri sufocado de excesso de morte; como
acordar de novo?
O prédio não aterrissou da manhã, como um avião
desgovernado na pista.
A saída era uma só e o medo vinha de todos os
lados.
Os adolescentes não vão acordar na hora do almoço. Não vão se
lembrar de nada. Ou entender como se distanciaram de repente do
futuro.
Mais de duzentos e quarenta jovens sem o último beijo da mãe, do
pai, dos irmãos.
Os telefones ainda tocam no peito das vítimas estendidas
no Ginásio Municipal.
As famílias ainda procuram suas crianças. As
crianças universitárias estão eternamente no silencioso.
Ninguém tem coragem de atender e avisar o que
aconteceu.
As palavras perderam o sentido.
Fabrício Carpinajar é gaúcho, escritor, jornalista e professor universitário, autor de vinte e um livros, pai de dois filhos, um ouvinte declarado da chuva, um leitor apaixonado do sol. Quando conseguir se definir, deixará de ser poeta.